Professor titular de engenharia de software da Universidade Federal de Pernambuco, com doutorado em computação pela University of Kent at Canterbury, na Inglaterra, o paraibano Silvio Meira é um homem ligado no futuro.
Um pensador preocupado com as conexões entre economia, história, inovação e cultura. Foi com essa mentalidade que ele ajudou a fundar, no ano 2000, o Porto Digital, um polo tecnológico situado no centro antigo do Recife, que concentra cerca de 100 empresas de tecnologia. Sua atuação no Porto, cujo conselho preside, se dá também por meio do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (C.E.S.A.R.), um núcleo privado de inovação que desenvolve projetos para empresas como Samsung, Motorola e Siemens. Nesta entrevista, Meira aponta aquilo que, a seu ver, o País deveria fazer para ocupar um lugar de protagonista na economia internacional. “O Brasil é grande demais para viver só de commodities”, diz. “Uma boa visão é definir, como meta, nos próximos 25 anos, ser um dos cinco maiores produtores de software.”
DINHEIRO – O ciclo de vida dos produtos de tecnologia é muito curto. Essa dinâmica não faz a indústria investir milhões em uma série de recursos inúteis?
SILVIO MEIRA – A alucinação coletiva pela novidade é parte da humanidade desde que nos entendemos por gente. A história das facas e das espadas, que tem milhares de anos, é uma coleção de invenções malucas. Num cenário de aplicação do conhecimento, sempre haverá o que se pode chamar de combinação de curiosidade com confiança humana. Curiosidade sobre o que fazer aliada à confiança de que é possível tornar aquilo realidade. Agora, pense num mundo em que posso mandar fabricar quase qualquer coisa, bastando para isso ter os meios, como temos hoje. Isso nunca aconteceu antes.
DINHEIRO – Como isso se aplica ao mercado de tecnologia?
MEIRA – Especificamente, no que se refere às plataformas digitais, é preciso observar que elas são muito padronizadas. Se quisermos mandar produzir um tablet na China com três câmeras na frente e uma atrás, nós fazemos. E fazemos com a qualidade que desejarmos, pelo preço que quisermos. Então, a padronização dos componentes para baixo elevou a expectativa para cima, pois é possível fazer praticamente qualquer coisa em qualquer lugar. Essa dinâmica proporciona a criação, por exemplo, de uma câmera com a qual posso fazer um chat. Ou um aspirador robotizado que faz não sei o quê, um software no seu carro integrado às redes sociais, etc. É a criatividade.
DINHEIRO –Qual seria o futuro de invenções como essas?
MEIRA – Há um processo de seleção. As que vão passar no crivo são aquelas que tiverem volume de aceitação e, consequentemente, de produção capaz de justificar a atividade industrial e comercial por trás delas. Todo o resto vira curiosidade.
DINHEIRO – Nesse contexto, pensar globalmente é fundamental. O Brasil avançou em seu processo de internacionalização, especialmente na área de tecnologia?
MEIRA – O Brasil é grande demais para viver de commodity. Pense no caso do Chile. Há 15 anos , não se encontrava uma garrafa de vinho chileno na Europa. Hoje, você entra numa adega europeia chique e encontra produtos do Chile, alguns deles com preço de vinho europeu. Estão tentando fazer isso em Petrolina, em Pernambuco. Há garrafas que saem de lá pelo preço de R$ 80. Petrolina já descobriu que uma coisa é vender uva, outra é comercializar um produto sofisticado. Não há muito vinho brasileiro de R$ 80. E o que é isso? É agregação de valor, de percepção, marca e também de uma quantidade gigantesca de tecnologia no processo industrial. Mas com o objetivo de produzir com qualidade, porque não adianta me dizer que um produto é bom se ele não o for. E é muito mais difícil agregar tudo isso num computador, que não passa de uma lata.
DINHEIRO – O que vai diferenciar um computador é o software, não?
MEIRA – Sim. Portanto, a única chance que o Brasil tem do ponto de vista competitivo para as próximas duas décadas – já que, no passado, não habilitamos as cadeias de valor de hardware para a competição de classe mundial – é avançar em dois aspectos. Primeiro: habilitar a cadeia de valor de hardware para daqui a 20 anos, tempo necessário para que os sistemas hoje estabelecidos fraquejem no Japão, China, Taiwan e em outros lugares. O Brasil precisa buscar negócios que tenham alcance global. Mas o que temos aqui? Todas as ações de política industrial feitas no País, nas últimas décadas, na área de hardware foram na direção de substituição de importações, mas esse negócio não funciona em certos mercados.
DINHEIRO – Qual é a próxima onda na qual o Brasil deve embarcar?
MEIRA – A tecnologia do grafeno é uma delas, assim como novos tipos de energia e bateria. Ultravioleta extrema, para fazer litografia de circuitos, também. O problema é que não estamos apostando em nenhuma dessas coisas. E ficamos naquela história: como há um megarrombo na balança comercial, decidimos fazer umas fabriquetas de circuito integrado aqui, de baixa complexidade, para controle industrial. Mas fazer isso só para o mercado nacional provavelmente não é um bom negócio.
DINHEIRO – Por quê?
MEIRA – Isso teria então de ser feito com subsídio pesado do governo ou com uma fábrica estatal, o que também não é uma boa alternativa. Não é sustentável no longo prazo, porque está provado que os negócios intensivos em hardware exigem, para dar certo no longo prazo, uma vertente de pesquisa e desenvolvimento turbinado com inovação e alto investimento privado de risco. O que vai ser exigido lá na frente é a capacidade de criar, empreender e investir. Enquanto isso, há algumas situações injustificáveis. Cria-se, por exemplo, um megamecanismo de incentivo para trazer a “fabricação da Apple” para o Brasil, com o preço do aparelho exatamente igual ao do importado. Ou seja, obtém-se subsídio público, pago por todos os contribuintes, para jogar na margem de lucro da Apple.
DINHEIRO – O sr. se refere ao projeto bilionário para a criação de novas fábricas da Foxconn no Brasil, não?
MEIRA – É simplesmente uma falha estrutural do que são os investimentos nesses setores. O setor de hardware de alta sofisticação não é igual ao mercado de minério de ferro, de bauxita. Software é um mercado de conhecimento. É preciso criar certas commodities nessa área. E de que tipo? Educação de alta qualidade provida num número diverso o suficiente de lugares para haver uma quantidade de pessoas capazes de exprimir essa competência nos mercados internacionais. Só essa qualidade, porém, não funciona. A indústria de software, que é muito jovem, pois data do meio da década de 1970, só existe competentemente, salvo raríssimas exceções, quando o investimento empreendedor e a capacidade de tomada de risco são muito grandes. A única plataforma global de software que não é dos EUA é a SAP, da Alemanha. Não há outra, é um acaso ter havido isso lá. Isso só aconteceu porque um pessoal saiu da IBM alemã e pegou um vetor inteiro de competências da empresa, conseguindo assim se estruturar no mercado. Além de competência, contaram com o apoio de companhias alemãs espalhadas pelo mundo. Mas é a única plataforma. Todas as outras são americanas. E isso porque há toda uma cadeia de valor que passa pela formação de capital humano e sua conexão com o mercado, com os processos de investimentos e tomada de risco, fomento e forte subsídio governamental.
DINHEIRO – Pensar globalmente nunca foi uma característica brasileira.
MEIRA – O maior problema do Brasil é justamente sempre olhar o próprio quintal. A solução é, obviamente, imitar o que os outros fazem – e muito bem –, que é perguntar: o que o mundo vai comprar? Em informática, tanto em hardware quanto em software e em serviços, esse pensamento é fundamental pelo seguinte: não há produtos locais de informática. Só os globais. À medida que o mundo se conecta com redes cada vez mais rápidas e de melhor qualidade, mais os produtos serão globais.
DINHEIRO – O que o Brasil deveria definir como prioridade para as próximas décadas, na área de tecnologia e inovação?
MEIRA – Uma boa visão é definir como meta ser, nos próximos 25 anos, um dos cinco maiores fornecedores mundiais de software. Temos população, competência e mercado de partida para ter essa ambição. Pouco importa qual é o software, deixe as pessoas escolherem isso. Não há design governamental para software. Digo ainda mais: deveríamos ter, em dez anos, um, dois ou cinco provedores globais de software como serviço. O software está mudando completamente sua característica. Ele está se tornando um fluxo de dados e informações, que é bilhetado por uso. A eletricidade, por exemplo, é gerada aqui, mas não pode ser enviada para a Rússia, pois o custo de transmissão é muito alto. Já a “informaticidade”, que é a capacidade de transmitir, processar e controlar informação, pode ser feita no Recife e mandada para qualquer lugar do mundo.
DINHEIRO – Mas ainda há possibilidade de pleitear lugar de destaque no mercado de softwares, que já é dominado por titãs como Oracle, SAP e Amazon, entre outras?
MEIRA – A história mostra que algumas das companhias que estão aí hoje podem estar vivendo o seu ocaso. Na prática, o Facebook tem cinco anos. Saiu do nada para ter um bilhão de usuários globais. O Facebook poderia ter sido feito em qualquer lugar do mundo, inclusive no Brasil. Antes, o próprio Orkut, o Twitter, a Amazon Web Services poderiam ter saído de qualquer país. Estamos falando de empresas que têm cerca de cinco anos. Os data centers da Apple, que provêm grande quantidade de conectividade global, são todos movidos a carvão mineral e óleo diesel. São os data center mais sujos do mundo. Temos a oportunidade no Brasil, com dezenas de gigawatts de energia eólica disponíveis, de conectar data centers brasileiros para prover informação e serviços de software para o mundo. Tudo isso montado em fazendas eólicas do interior do Nordeste. E o Brasil é um dos melhores lugares para fazer isso, inclusive porque podemos prover green bits, ou bites verdes. A matriz brasileira de energia elétrica é limpa em mais de 85%.
Fonte: Silvio Meira, fundador do Porto Digital, do Recife - Entrevista Por Clayton MELO - http://www.istoedinheiro.com.br